quinta-feira, 5 de março de 2015

Resta um Descanso III

A Torá evidencia existir uma união entre o sábado do mandamento e o tabernáculo, a qual não parece ser óbvia à maioria dos leitores. É importante salientar que o mundo cristão não raciocina com o sábado e muito menos com o tabernáculo, aceitando que este raciocínio é próprio do ambiente judaico, mas, não pertinente no âmbito cristão. Esta idéia é inadequada, uma vez que o cristianismo deriva diretamente do judaísmo e, portanto, todo e qualquer princípio judaico não pode ser olvidado ou menosprezado, porque aquilo que a Torá apresenta como sendo oráculo (tudo o que é dado diretamente por Deus) não pertence ao conjunto das tradições humanas. Assim, a ligação entre o sábado e o santuário deveria ser examinada.
Em Êxodo 31 vemos Deus explicando a Moisés todo o planejamento para o santuário, sua construção em exaustivo detalhamento, sendo que ao final da explicação Deus ordena ao povo a imprescindibilidade da guarda do sábado do sétimo dia. Porém, no capítulo 35 Moisés aparece instruindo ao povo sobre a construção do santuário e tal explicação inicia com a guarda do sábado e culmina com os pormenores da construção. Nos dois textos vê-se a ligação entre o sábado e a construção do santuário, mas a ordem de comando está invertida, quando Deus causa a explicação, a guarda do sábado vem no final, mas, quando é Moisés quem fala, a guarda do sábado vem no início. A questão que salta diante dos olhos é por que?
O que vê-se é a justaposição do comando do sábado e a construção do tabernáculo. Tal justaposição parece ser intencional para estabelecer que o sábado domina sobre as consecuções humanas e sobre a construção do tabernáculo. Não somente o sétimo dia determina o término do trabalho secular, como também traz o repouso ao labor santo: construir uma casa para Deus. Segundo Jonathan Sacks, em sua obra Exodus, o santuário espelha a criação do próprio universo. Como a criação divina culmina no sábado, assim também a criação humana. A diferença entre o relato das instruções dadas por Deus e aquelas dadas por Moisés para a construção do tabernáculo está na posição do comando para guardar o sábado, sendo que a explicação à referida diferença pode ser encontrada no próprio sábado, o sétimo dia da semana da criação.
Do ponto de vista de Deus, o sábado foi o sétimo dia da semana da criação; do ponto de vista do primeiro ser humano (Adão fora criado no sexto dia) o sábado foi o primeiro dia. Há algo fundamental em jogo: quando vemos a criação divina, não encontramos lacuna entre a intenção e a execução. Deus fala e a palavra se torna em ente ou realidade, ou seja, Deus vê o fim desde o princípio (Isaías 46:10). De outro lado, com os seres humanos ocorre outra coisa, frequentemente não nos é possível ver o fim desde o começo, ou o resultado no início. Apesar dos planejamentos cuidadosamente calculados, há sempre falhas e imprevisões. Por esse motivo, alguns buscam a alternativa de simplesmente deixar as coisas acontecerem, mas, para o povo de Deus este tipo de resignação está completamente fora da história. Para seres humanos criados à imagem de Deus, com poder para produzir trabalho criador, resignar-se é negar sua capacidade de interferir. A solução é buscar revelar o fim desde o começo.
Este é o significado do sábado. Não é simplesmente um dia de repouso, mas, a antecipação do final da história, ou seja, da era messiânica. Nela, recuperaremos a harmonia perdida no jardim do Éden. No sábado não permitimos a manipulação do mundo, nós exaltamos a suprema obra de arte do criador. Não admitimos o exercício do poder ou a dominância sobre outros seres humanos, nem mesmo sobre os animais. Todos são iguais em dignidade e liberdade no sábado, nele vivemos a esperança do mundo porvir quando a lei de Deus estará novamente em pleno funcionamento originando uma era de justiça e paz. Chamamos sua atenção para o fato prático na dinâmica sabática: em cada sábado ensaiamos o mundo futuro, a sociedade ideal que não acontecerá casualmente, uma vez que a objetivamos semanalmente, nós a experimentamos a cada sete dias, ou seja, a cada sábado temos uma visão do final desde o começo. É como se abríssemos uma cortina para ver e viver o futuro, uma vez que o sábado determina direitos iguais, todos têm acesso ilimitado à graça, todos se tornam iguais em dignidade.
Agora poderemos melhor entender o símbolo completo de construir um tabernáculo. No deserto, muito antes de cruzarem o Jordão e entrarem na terra prometida, Deus convidou aos israelitas para construírem uma miniatura do universo. No tabernáculo a ordem fora cuidadosamente calibrada, tal qual o é o universo; todas as constantes físicas e químicas cuidadosamente calibradas para que a vida fosse possível. O tabernáculo foi construído de forma exata; não apenas um edifício, mas, um protótipo simbólico da construção de uma sociedade; um espaço onde todos teriam acesso à justiça e à vida, um lugar de harmonia com Deus e com o próximo. O tabernáculo era o lar terrestre para a presença divina; a sociedade israelita deveria ser também construída de molde a ser um lugar para a presença de Deus, se houvessem honrado aos mandamentos. O acabamento final da sociedade é a harmonia da existência que ainda não experimentamos, pois vivemos num mundo de trabalho e lutas, de conflitos e competições.
Deus, entretanto, deseja que conheçamos aquilo que objetivamos, de modo que não venhamos a perder nosso rumo no deserto do tempo. Esta é razão pela qual, quando pediu a construção do tabernáculo através da execução humana, o sábado veio primeiro, muito embora, em termos globais, a era messiânica, o sábado da história, vem depois. Deus tornou conhecido o fim desde o começo. O cumprimento do repouso que segue ao labor criativo; o lugar que um dia tomará o espaço da disputa – desta forma podemos a cada sábado ter uma visão do nosso destino, antes de começar a jornada. Em Êxodo 31 o sábado está comandado no final porque Deus já sabia o fim, qual seja, o aprendizado e a vivência da harmonia. Em êxodo 35 o sábado aparece primeiro porque Moisés deveria demonstrar que a harmonia deveria ser apreendida antes da montagem da sociedade israelita. Do mesmo modo como aconteceu na semana da criação, Deus vendo o fim desde o princípio estabeleceu o sábado no sétimo dia, mas, para o primeiro ser humano, foi o primeiro dia, ou seja, começou a sua jornada vendo o fim desde o princípio.
Hoje temos a cada sete dias uma oportunidade de treinar a sociedade harmônica. No sábado, quando ocorre o encontro dos irmãos para adoração, há muitas oportunidades para ensaiar a sociedade perfeita. Não deveríamos nos tornar ouvintes passivos dos cultos sabáticos, mas, numa atitude proativa participar na construção de um ambiente mais justo, onde a dignidade de todos deverá ser preservada. Os que têm o dom de ensinar deveriam usá-lo de forma cabal para que todos tivessem acesso à graça. Todos deveriam participar nos projetos coletivos de ajuda financeira, quer sejam de âmbito local ou não. Aliás, se a cada sábado ensaiamos a sociedade perfeita do futuro ou a objetivamos, então, os que possuem maior sabedoria deveriam treinar os menos informados e os novos na fé.

As reuniões sabáticas são parte de um calibradíssimo sistema calculado para possibilitar o treino e o aprendizado para a construção de uma sociedade que, em seu seio traz o caráter de Deus. As congregações quando reunidas no sábado devem estabelecer o ambiente para a morada de Deus. Quando a era messiânica estiver em andamento, os salvos serão o tabernáculo de Deus, logo, a cada sábado temos o privilégio de treinar essa realidade e, em assim procedendo, teremos direito a ela não por uma casualidade, mas, porque a objetivamos. 

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