terça-feira, 1 de agosto de 2017

Vergonha ou Culpa?


Justine Sacco, 30 anos, diretora de comunicação da InterActiveCorp (IAC), usava o Twitter para chamar a atenção das pessoas com piadas. Em uma ocasião alfinetou a organização People for the Ethical Treatment of Animals – PETA, com a seguinte mensagem: “Gosto de animais, mas em dias frios como este até esfolava um por causa da pele” . Noutro momento, depois de uma série de tweets tão agressivos quanto o anterior disse: ”Não posso ser despedida por enviar mensagens intoxicadas, certo?”. Ao chegar ao aeroporto em Nova Iorque, em 20 de dezembro de 2013, a responsável pelas Relações Públicas da IAC continuava sem sensuras a tweetar o que lhe vinha à cabeça. Denunciou o suor de um alemão: “estás em primeira classe. Estamos quase em 2014. Vai comprar um desodorante”. Enquanto esperava seu voo por causa de uma escala no aeroporto de Heathrow, escreveu que os ingleses têm “maus dentes”.
Enquanto aguardava para embarcar na última etapa do voo entre Nova Iorque e Cidade do Cabo, na África do Sul, onde visitaria a família durante o Natal, enviou uma última mensagem para os seus 170 seguidores: “Em direção a África. Espero não apanhar AIDS. Estou brincando! Sou branca!”
Justine Sacco embarcou para uma viagem de 11 horas e aproveitou para dormir, uma vez que naquele avião não havia acesso à Internet. O voo decorreu normalmente, sem sobressaltos. Quando Justine Sacco desembarcou no aeroporto da Cidade do Cabo e ligou o celular, recebeu uma mensagem de alguém com quem não mantinha contato desde os tempos do liceu: “Lamento muito o que está acontecendo”. Logo depois, um SMS da melhor amiga Hanna: “Telefone-me o mais depressa possível”.
As notificações chegavam ao seu celular num ritmo impaciente, deixando-a incrédula, sem saber o porquê. Toque de chamada no celular. Era Hanna. Com voz aflita, informou-a que ela, Justine Secco, a mulher com 170 seguidores, ocupava a primeira posição na lista de trending topics (as palavras mais postadas) do Twitter a nível mundial.
As mensagens não cessavam de chegar: “Enojado com o tweet racista de @Justine-Sacco”. “Como é que esta fulana trabalha em Relações Públicas? O seu nível de ignorância racista está mais de acordo com a Fox News. AIDS afeta qualquer pessoa! ” Uma mensagem incisiva chegou dizendo: “Sou funcionário da IAC e não quero voltar a ver @Justine-Sacco encarregar-se da comunicação em nosso nome”.
Os patrões de Justine Sacco – donos de sites como o The Daily Beast, Vimeo ou CollegeHumor – escreveram um pronunciamento: “Comentário ofensivo e ultrajante que não reflete as opiniões e valores da IAC. Infelizmente, a funcionária em questão está incomunicável num voo internacional, mas isto é um assunto sério e tomaremos medidas apropriadas”. Enquanto ela dormia tudo isto foi acontecendo.
A mídia social transformara Justine Sacco em racista, insensível à pobreza e miséria humanas. Gradualmente, a condenação moral foi-se transformando em divertimento. Quando iria aterrissar? Como iria reagir? Vai ser despedida? Um delicioso sabor a suspense fora adicionado ao molho picante dessa narrativa.
Mais mensagens foram enviadas: “O que eu quero para o Natal é ver a cara da @Justine-Sacco quando receber as mensagens”. “Ela terá o serviço de despertar mais doloroso de todos os tempos”. “Estamos prestes a ver esta fulana ser despedida”. Ela ainda não tinha tomado consciência do que estava acontecendo e nem suspeitava de que estava para perder o emprego.
Ainda não tinha saído do aeroporto e um homem começou a fotografá-la, lembrando um paparazzi assediando celebridades. Era Zac, um utilizador do Twitter que vivia perto do aeroporto e resolvera responder à pergunta mais formulada das últimas horas: #HasJustineLandedYet?
Escreveu alguém. “Então, não há ninguém que viva na Cidade do Cabo para ir ao aeroporto tweetar a chegada dela?” Zac, o Twitter-Paparazzi entrou em ação. E assim aconteceu. Alvo localizado, foto tirada e colocada online: “Sim, @Justine-Sacco aterrou de fato no Aeroporto Internacional da Cidade do Cabo. Está usando óculos escuros para se disfarçar”, escreveu Zac, cheio de brio policial.
Nos seguintes 11 dias ela seria citada no google mais de um milhão de vezes. Ela fora estigmatizada como racista e, como consequência, demitida do emprego. No período de uma noite ele tornara-se persona non grata. Por fim exilou-se na Etiópia na tentativa de apagar o passado.
A nova mídia social tem instigado o retorno de um fenômeno antigo, vergonha pública. Os escritores Jon Ronson (So you ‘ve Been Publicly Shamed) e Jannifer Jacquet (Is shame necessary?) publicaram livros recentes onde discutem tal assunto. Jacquet advoga que a exposição pública ou envergonhar alguém, em alguns casos, pode ser considerado como boa coisa. Isso pode constranger empresas públicas a adquirirem comportamentos mais responsáveis, por exemplo. Já Ronson destaca os perigos. Uma coisa é ser envergonhado pela comunidade à qual você faz parte; outra coisa é ser envergonhado por uma rede global de estranhos que não sabem nada sobre você ou sobre o contexto no qual o seu ato tomou lugar. Isto é como um linchamento, portanto, injustiça.
Tais análises parecem ajudar a compreender o atordoante fenômeno do tzaraat, uma condição longamente tratada em Levítico 13. Tzaraat tem sido traduzida como lepra, doença dermatológica, infecção escamosa. Porém, a identificação de tzaraat com qualquer doença é problemática. Primeiro, seus sintomas não correspondem à doença de Hansen, conhecida como lepra.  Segundo, conforme está descrita em Levitico, afeta não somente humanos, mas também paredes das casas, móveis e roupas (Lev.14:54-55). Não há nenhum problema médico que apresente tais características.
Além disso, a Torá é um livro sobre santidade e conduta correta. Não é um texto médico. Mesmo que fosse, conforme o rabino David Zvi Hoffmann aponta em seu comentário, o procedimento a ser adotado não corresponde àqueles que deveriam ser tomados se tzaraat fosse uma doença contagiosa. Finalmente, tzaraat como descrita na Torá é uma condição que não acarreta só doença, mas impureza, tum’a. É oportuno que se diga que saúde e pureza são coisas diferentes.
O mistério parece decodificado no relato das instancias da Torá nas quais alguém estava afligido por tzaraat. Uma desses relatos aconteceu quando Miriam falou contra seu irmão Moisés (Num. 12:1-15) Outro ocorreu quando Moisés, na sarça ardente, disse a Deus que os israelitas não creriam nele. Sua mão repentinamente tornou-se leprosa como neve (Ex.4:7).
Os comentaristas consideraram tzaraat como punição por lashon hara, falar mal, falar negativamente ou denegrir outra pessoa.
Isto os ajudou a explicar por que os sintomas de tzaraat – mofo, descoloração- poderia afetar paredes, móveis, roupas e a pele humana. Trata-se de uma sequência de avisos ou punições. Primeiro Deus avisava o ofensor enviando um sinal de degradação na parede da casa. Se o ofensor se arrependia a condição desaparecia. Caso contrário, seus móveis eram afetados, então as suas roupas, e finalmente a sua pele.
Como nós compreendemos isto? Por que o falar mal era considerado ofensa assim tão séria que tzaraat era tomada para apontar sua existência? E por que era punido dessa maneira e não de outra?
Foi a antropologista Ruth Benedict em seu livro sobre a cultura japonesa, The Chrysanthemum and the Sword, quem popularizou a distinção entre dois tipos de sociedade – culturas da culpa e culturas da vergonha. Grécia antiga, assim com o Japão, são exemplos de culturas da vergonha. Judaísmo e as religiões por ele influenciadas são exemplos de culturas da culpa. As diferenças entre elas são substanciais.
Na cultura da vergonha, o que importa é o julgamento de outrem. Agir moralmente significa conformação às regras manifestas, leis e expectativas. Fazemos o que outras pessoas esperam que façamos. Seguimos as convenções da sociedade. Se falhamos, a sociedade nos pune submetendo-nos à vergonha, ao ridículo, à desaprovação, humilhação e ao ostracismo.
Na cultura da culpa o que importa não é o que outros pensam, mas a voz da consciência. Viver moralmente bem significa agir de acordo com imperativos morais internalizados: você deve fazer assim e você não deve agir assim. O que importa é o que você sabe ser o certo e o errado.
Pessoas na cultura da vergonha estão direcionadas de outra forma. Elas se preocupam sobre como aparecerão aos olhos dos outros, ou a respeito das suas imagens.
Pessoas na cultura da culpa estão direcionadas para o seu interior. Elas estão preocupadas sobre o que honestamente sabem sobre si mesmas. Mesmo se a imagem pública esteja imaculada, se sabem que tem errado, isto as fará sentir desconfortáveis. Fará acordar durante a noite. Vergonha é humilhação pública. Culpa é tormento interno, íntimo.
A emergência de uma cultura da culpa no judaísmo (portanto interessa ao cristianismo) fluiu de sua compreensão do relacionamento entre Deus e a humanidade. No judaísmo não há atores no palco com a sociedade como audiência e juiz. Pode-se enganar a sociedade; mas não se pode enganar Deus. Toda pretensão e orgulho, o cultivo cosmético da imagem pública é irrelevante: O Senhor não olha para as coisas que as pessoas olham, mas olha para o coração (I Sam.16:7). Culturas da vergonha são coletivas e conformistas. Por contraste, judaísmo, a paradigmática cultura da culpa, enfatiza o indivíduo e seu relacionamento com Deus. O que importa não é se nos conformamos com a cultura da época, mas se fazemos o que é bom, justo e correto. Esta tem sido a postura dos ensinamentos de Ellen White.
A lei da tzaraat parece fascinante; de acordo com a interpretação dos comentaristas, ela constitui uma das raras instâncias de punição por vergonha ao invés da culpa encontradas na Torá. O aparecimento de fungo ou descoloração sobre a parede de uma casa era o sinal público do comportamento errado no privado. Esta era a forma de dizer a todos os conviviam ou visitavam “coisas ruins têm sido feitas neste lugar”. Pouco a pouco os sinais ficavam mais próximos ao culpado, aparecendo na sua cama ou cadeira e, em seguida, nas suas roupas, depois na sua pele, até que finalmente encontrava-se diagnosticado como contaminado:  também as vestes do leproso, em quem está a praga, serão rasgadas, e a sua cabeça será descoberta, e cobrirá o lábio superior, e clamará: Imundo, imundo.  Todos os dias em que a praga houver nele, será imundo; imundo está, habitará só; a sua habitação será fora do arraial. (Lev. 13:45-46). Estas são por excelência expressões de vergonha. Primeiro é o estigma, a marca pública de desgraça ou desonra (roupas rasgadas, cabelo despenteado). Então vem o ostracismo, exclusão dos assuntos habituais da sociedade. Tais coisas nada têm a ver com a doença, mas com a desaprovação social. Isto é o que torna a lei da tzaraat tão particular: é uma das raras aparições da vergonha pública em uma cultura não baseada na vergonha, mas na culpa. Acontece, porém, não porque a sociedade tenha expressado sua desaprovação, mas porque Deus sinalizou que deveria ser assim. E por que especificamente no caso do lashon hara, falar mal?
 Porque a fala é o que mantém a sociedade unida. Antropólogos têm arguido que a linguagem evoluiu entre os humanos precisamente para fortalecer os laços entre eles, de modo que poderiam cooperar em grandes grupos mais do que quaisquer outros animais. O que sustem a cooperação é a verdade, a confiança. Sacrifícios são realizados em favor do grupo, sabendo que outros são estimulados a fazer o mesmo. Esta é a razão porque lashon hara é tão destrutiva. Ela mina a confiança. Provoca desconfiança entre as pessoas. Enfraquece as ligações que sustentam a unidade do grupo. Se estiver sem controle, lashon hara destruirá qualquer grupo – uma família, uma equipe, uma comunidade, até mesmo uma nação. Daí seu caráter excepcionalmente lesivo; usa o poder da linguagem para enfraquecer o que a linguagem pode criar, ou seja, a confiança que sustenta o vínculo social.
Esta era a razão porque a punição por lashon hara era para excluir da sociedade por exposição pública, estigmatização e vergonha e finalmente o ostracismo.
É difícil, talvez impossível, punir o mexeriqueiro usando as convenções normais do direito – os tribunais e o estabelecimento da culpa. Isto pode ser realizado no caso da difamação ou calúnia, porque são todas declarações falsas. Lashon hara é mais sutil. O falar mal é perpetrado não por falsidade, mas por insinuação. Há muitas maneiras de prejudicar a reputação de uma pessoa sem realmente contar uma mentira.
Alguém acusado de lashon hara facilamente pode dizer, eu não disse isto, não quis dizer isto, e mesmo que tenha feito, eu não disse nada falso. A melhor maneira de lidar com pessoas que envenenam relações sem na verdade proferir falsidades é nomeando-as, envergonhando-as e evitando-as.
De acordo com os sábios, era o que tzaraat miraculosamente fazia nos tempos antigos. Ela já não existe na forma descrita na Torá. Mas o uso da internet e das mídias sociais como instrumento de descrédito público ilustra tanto o poder, como o perigo de uma cultura da vergonha. Só raramente a Torá menciona a cultura da vergonha, e neste caso somente por um ato de Deus, não da sociedade.
Ainda permanece a moral do tornar-se puro. Fofoqueiro malicioso, lashon hara, mina relações, erode ligações sociais e estraga a confiança.  Isto merece ser exposto e envergonhado.
Vivemos momentos solenes que parecem dizer que o final está próximo. Em Apocalipse 22:11 aparece novamente a figura do imundo ou sujo: “Quem é injusto, faça injustiça ainda; e quem está sujo, suje-se ainda; e quem é justo, faça justiça ainda; e quem é santo, seja santificado ainda. Conforme vimos, a imundície está atrelada a desunião, desconfiança e desavença. Estas são as características daqueles que não nasceram no reino de Deus. Aliás, em Proverbios 6:16-19 lemos “ Estas seis coisas o SENHOR odeia, e a sétima a sua alma abomina: Olhos altivos, língua mentirosa, mãos que derramam sangue inocente, O coração que maquina pensamentos perversos, pés que se apressam a correr para o mal, A testemunha falsa que profere mentiras, e o que semeia contendas entre irmãos.
(texto adaptado do livro do Rabino J.Sacks “Ensaios sobre ética”)